top of page

O buraco mais embaixo

Crônica  | Ana Paula Nascimento 

Resolvi descer. Talvez não tenha sido uma decisão, mas uma necessidade, apesar de ainda fazer feiras semanais. Ultimamente isso pode ser caracterizado como minha distração e lazer, já que desenvolvi predileção pelo que acontecia do limite da minha casa para fora. Troquei de blusa por uma qualquer. Escolhi aquela branca para ficar dentro de casa, na minha nova rotina, com as novas experiências que precisar estar em casa vem me ensinando. Chaves, máscara e álcool em gel eram as únicas coisas que precisava comigo para um passeio minimamente justo. E então desci. Desci com cara de quem estava em casa: camiseta, short e chinelo; que assim que chegassem já se tornariam limpos novamente. Novos hábitos para um ambiente imune. 

Com um olho nos degraus e outro no chaveiro que tento consertar, confiro se realmente peguei a máscara. Percebo que a forma de lidar com o atraso e a falta de tempo do tempo que se dizia normal ainda não desvinculou minhas atividades sobrepostas. Antes mesmo de chegar ao portão, constato que o barulho das motos que escutava da janela aumentou e até parece que sai das mochilas quadradas, e não da descarga de fato. Observo que além dos motoboys, funcionários de um supermercado e policiais seguem trabalhando. Na esquina consigo consertar o chaveiro e só agora me dou conta que ainda não coloquei a máscara. Essa foi minha primeira vez de uma repetição que ainda irá tardar. Combinei que faria essa caminhada com o máximo de cuidado possível por considerar que infringiria a segurança social com um curto passeio na vizinhança - detalhes para constar. Então percebo o quanto sufoca. Me faz associar o porquê de ter visto tantas pessoas com o nariz para fora ao longo desses dias. Muitas vezes só a experiência me faz entender, por isso ouso em algumas situações. 

Os primeiros quarteirões do meu percurso me transportam para a sensação de um domingo chuvoso em pleno dia-feira ensolarado com temperatura amena e me fazem saudar o modo de vida ordenado e genérico da cidade. Durou só até passar pela Casa-Sem-Muro. Bom, imagino que a caracterização da casa já tenha sido feita a partir do nome que dei pra ela; que só o fiz depois de ter sido ocupada por moradores que usam desse afastamento como parte de casa. Já vi um churrasco acontecendo ali mesmo, naquele pedaço meio deles meio público, onde a propriedade é diluída pelo uso. Cá estão eles de novo, comunicando que a resiliência e resistência são fissuras da turbulência que perdura na estrutura.

.

Finalmente avisto a praça. Nunca pareceu longe mas aparentemente a dinâmica das coisas influenciam na subjetividade espaço-temporal. Praça do Sol, como a chamo. Apesar de não ser uma praça com muitas pessoas, neste dia havia menos. Que bom! (?...). Ainda aproximando, vejo malabares no sinal e decido ir até lá. Bom dia! Trocamos olhares e alguma energia. Dei um dinheiro também mas pela ordem em que as coisas aconteceram, parece ter ficado mais agradecido com o que não é comercializado. Olhar nos olhos foi uma das estratégias de aproximação que adotei ao longo das caminhadas pelas ruas e, por isso, abandonei os óculos escuros. Para agora, bastaria uma só máscara. 

A minha vulnerabilidade como mulher e pedestre aliada ao desdobramento do meu prazer de experimentar, de fazer do meu corpo presente e de me entregar ao despretensioso, me indicaram sobre a necessidade de transmitir meu respeito e algum grau de equidade. Acredito que os olhos sejam realmente a janela que permitem acesso rápido à uma outra camada de sensibilidade das duas partes. Me despedi do malabarista com um sorriso que talvez ele tenha percebido pela elevação da maçã do meu rosto. 

Virando na praça para voltar pela rua paralela a que vim, vejo Judite. Judite!! Oi! Sou eu, tomo sol aqui! Tiro a máscara. Oi! É… Ainda é difícil reconhecer só pelos olhos. Judite é companheira de uma mulher que não sei o nome e sempre encontro com elas por aqui. Seria estranho, na verdade, ir na pracinha e não encontrá-las; quase nunca vejo a pracinha sem elas e nunca uma sem a outra. Nos conhecemos enquanto tomava sol por ali, mais no meio, quando eu já me sentia mais à vontade. Éramos duas, de biquíni, em um bairro de classe média, no parquinho da tradicional família mineira. Éramos outra Casa-Sem-Muro e eu ainda não tinha percebido tal semelhança. 

Sem cota de clube, nem praia, nem rio aberto e limpo em BH, me restou aproveitar o sol do verão por aqui. Foi assim: a união entre desejo pessoal e elevação das possibilidades de uso de uma praça pública, alimentando e satisfazendo meu ego e minha sensibilidade acerca da cidade. Compreendo que deparar com dois corpos bronzeados na praça ao sair da missa não eram fatos de contextos articulados (nem planejados), mas me faz cócegas imaginar que essa ação pode ter sido pauta do almoço de domingo. Muitos chegavam até nós para contar que lá fora isso é habitual e recebíamos até parabéns seguido de uma resposta negativa para se juntar.

Resolvi descer porque gostaria de imaginar um possível sim da próxima vez que o convite fosse feito; que fosse uma despedida do tempo em que os espaços eram monótonos e monofuncionais. Talvez a resiliência adquirida desta pandemia se desenvolva para fora dos limites e nos faça desfrutar dos espaços livres e abertos em sua plenitude coletiva.

  • YOUTUBE
  • Pinterest
  • Instagram

PORTACOPO Práticas de Arquitetura
Belo Horizonte - MG
2024

 

bottom of page